*Artigo publicado originalmente no UX Collective Brasil

Na indústria de tecnologia* e no dia a dia dos times de produto digital sempre surgem as discussões sobre o papel do design — geralmente vindas de dentro do próprio time de design.

Qual é o impacto que temos de fato e qual impacto que gostaríamos de ter nas tomadas de decisão sobre o que o produto será? Como conseguir espaço e alcançar o desejado ~assento na mesa~?

Os designers são responsáveis pela experiência do usuário, é o que costumamos ouvir. É o impacto esperado de quem trabalha com o design. Enquanto isso, os desenvolvedores e Líderes Técnicos cuidam da viabilidade (tecnológica) e as pessoas de Gestão de Produto cuidam do olhar do negócio.

Temos aí a visão da tríade de produto popularizada pelo Marty Cagan que, em tese, é capaz de tomar decisões autônomas em uma estratégia maior para criar e evoluir o produto.

O papel do design na tríade de produto

Na prática, o que vemos de forma mais típica é uma hierarquia: o time de Gestão de Produto e suas lideranças centralizam a tomada de decisões estratégicas, enquanto o time de Design trabalha a “experiência do usuário” a partir de tais decisões.

Esse tipo de visão, onde a Gestão de Produto tem uma visão mais estratégica que seus pares, pode ser vista quando Marty Cagan fala dos 4 grandes riscos na criação de produtos digitais:

  • Risco de Valor (se as pessoas irão comprar ou escolher usar o produto)
  • Risco de Usabilidade (se as pessoas conseguem usar o produto)
  • Risco de Factibilidade (se é possível construir o que precisamos com o tempo, habilidades e tecnologia disponíveis)
  • Risco de Viabilidade (se a solução funciona para os aspectos de negócio)

Segundo Cagan, cabe a Gestores de Produto trabalhar com riscos de Valor e Viabilidade e Desenvolvedores cuidarem do risco de Factibilidade. Para ele, os Designers trabalham para mitigar o risco de Usabilidade, sendo responsável pela Experiência do Usuário.

Em outras palavras: enquanto o Gestor de Produto cuida das decisões que levam das pessoas quererem adotar e usar o produto, o Designer só pensa em como elas irão usar.

Mas será que fica aí o limite das nossas capacidades?

O que é a tal da experiência do usuário?

Existem diversas formas de definir esse conceito. Uma abordagem de Don Norman traz experiência do usuário com uma visão ampla:

“A experiência do usuário engloba todos os aspectos de interação com a empresa, seus serviços e seus produtos”

Já a ISO 9241, de 2010, olha para a experiência de usuário como algo mais local:

“A efetividade, eficiência e satisfação com que usuários específicos atingem objetivos específicos em um dado ambiente”

No dia a dia, o que vemos de forma tácita é a experiência do usuário sendo pensada com o olhar local da ISO: as interações que irão materializar toda uma estratégia que já foi pensada antes.

Em palavras menos complicadas: a maioria das pessoas de outras especialidades — e muitos designers também — entende a experiência do usuário como as boas e velhas telinhas.

O que de forma alguma está 100% desconectado da realidade. Os casos de uso, fluxos de interação e telas são cruciais para entregarmos uma boa experiência com o produto.

Mas pensarmos nas “telinhas” como o único domínio da experiência do usuário — e o design por consequência — acabamos afastando nós designers de contextos onde podemos contribuir muito para produtos digitais mais bem sucedidos.

A boa e velha discussão sobre o que é design

Não existe designer que já não esteja cansado desse papo. A grande maioria de nós gasta uma boa parte da formação — e para os mais nerdolas como eu, dos papos de boteco também — discutindo o que é design.

Mas clichês não são clichês à toa. Avaliar o significado de uma área de conhecimento pode ajudar muito a entender o lugar que ela ocupa e pode ocupar. Afinal de contas, a linguagem que usamos reflete — e reversamente influencia — como vemos e organizamos o mundo.

A despeito das diversas abordagens que podemos buscar para definir design, vale olhar para o significado da palavra que nomeia essa área de conhecimento: design significando desígnio e planejamento. Designar algo significa pensar sobre o que algo será e como vai ser feito. Trazemos então o olhar da concepção. Uma etapa anterior ao fazer onde, intencionalmente, decidimos o que um artefato pode e deve ser para cumprir sua função.

Fala-se muito dos designers como os defensores do usuário, mas antes disso, a formação de design carrega um instrumental forte para respondermos à pergunta: como diabos se faz algo? Estou falando aqui de processo e método, claro. A centralidade no usuário vem junto porque, ao gastarmos tanto tempo pensando processo e método, fica óbvio que conceber algo só faz sentido se pensarmos para quê e para quem algo serve.

Trazendo esse pensamento para o contexto de produtos digitais, o Designer de Produto seria então quem consegue auxiliar com o pensamento de método e processo para conceber o produto. Ele tem potencial para cuidar não somente da “visão do usuário” mas também de todos os aspectos que fazem a ponte que cruza a distância entre o que o usuário precisa e o que é viável financeira e tecnologicamente de ser criado.

Ao olharmos para a história do design, o olhar para o usuário não existe em um vácuo, mas como o melhor caminho para garantir o valor, adoção, uso e rentabilidade de um produto.

Nas palavras do famoso Tim Brown, em seu artigo de 2008 na Harvard Business Review:

“O pensamento de design pode ser descrito como uma disciplina que usa a sensibilidade e métodos do design para conectar necessidades das pessoas com o que é tecnologicamente factível e o que uma estratégia de negócio viável podem converter em valor para o cliente e oportunidade de mercado

O mesmo tipo de abordagem pode ser visto no trabalho de diversos outros autores que falam de design para o mundo dos negócios, como Thomas Lockwood, Brigitte Borja de Mozota e Roberto Verganti.

Qualquer semelhança com o clássico Diagrama de Venn que descreve a tríade de produto, não é coincidência:

Diagrama de Venn com Riscos de Produto - Design também é produto & negócio Estratégia de Design
Diagrama de Venn com Riscos de Produto. Fonte: blog da ProductTalk

É por isso que design também é produto: significa pautar não somente a forma que esse produto irá tomar (interação) mas também na definição de quais funções esse produto deve desempenhar (estratégia).

Nesse aspecto, conceber um produto não é só pensar em como as pessoas irão interagir com ele, mas também entender porque fazer esse produto, quais funcionalidades ele deve ter, como cobraremos por ele de uma forma que faça sentido para a empresa e para o próprio usuário.

Não é possível criar uma solução para um problema se ela não é sustentável e perene — ou seja, continuará resolvendo esse problema enquanto ele existir. Em um sistema econômico capitalista, isso significa que essa solução deve garantir lucro e escalabilidade para a organização que entrega ela. E é por isso que nós designers também devemos nos atentar à esfera do negócio.

Podemos e devemos nos incluir nas conversas sobre a viabilidade financeira e balancear as necessidades dos usuários com o que é possível entregar. Afinal de contas, os mesmos processos e pensamentos que usamos para definir hierarquia de informação, pensar o funcionamento de um menu e gerar ideias de interface também pode ser aplicado para definir uma proposta de valor, para idear uma estratégia de go-to-market ou para priorizar ações de um roadmap.

Dentro desse ponto de vista, faz muito mais sentido o olhar global de Norman. Experiência do usuário é tudo o que ele vive em relação a uma solução incluindo, mas não se resumindo somente, à usabilidade.

Linguagem: picuinha ou profecia autorrealizante?

Mas se nós designers também podemos olhar para os riscos de valor e viabilidade, como fica nossa relação com nossos pares de Gestão de Produto?

Usando a mesma lógica de definição etimológica para nossos pares Gestoras de Produto, estamos olhando para alguém que gerencia o processo de produto. A especialidade mais forte dessa área, nesse sentido, seria justamente a esfera da gestão. Nessa visão, compartilhamos com nossos pares Gestores de Produto a esfera do negócio e temos um potencial maior de estar definindo juntos a estratégia, sem isso significar uma sobreposição. Nesse ponto, as Gestoras de Produto também estão impactando o risco de Factibilidade, pois estão atentas a como as estratégias serão executadas no nível de time e como se conectam com a organização.

Como a própria Teresa Torres já disse, mais do que isolar especialidades em caixinhas onde “cada uma cuida do seu risco” pode ser muito rico entender as potencialidades de cada especialidade e como ela pode contribuir para a mitigação de cada um desses riscos. O pensamento de design pode (e deve) ser insumo para todos os integrantes da tríade de design olharem para o que tange os aspectos de uso, adoção, desejabilidade e viabilidade de uma solução.

De forma tácita, vejo de forma muito comum nos referirmos a nossos pares como as pessoas “de negócio” ou as pessoas “de produto”. Isso pode fazer com que, talvez inconscientemente, afastemos o design dessas duas esferas, cristalizando em nós mesmos a visão de que experiência do usuário corresponde somente às interações que desenhamos.

Todo esse exercício de linguagem pode parecer um grande preciosismo. Será que mudar o jeito de falar uma palavra mudará o espaço que temos? Muito provavelmente não é uma solução única que começa e termina em como arranjamos as palavras, mas pode ser um ponto importante para criarmos espaço para entendermos nossas potencialidades e exercermos elas com intencionalidade.

Vale lembrar que a linguagem também é um comportamento que, de uma forma retroflexa, influencia outros comportamento que temos individualmente e também coletivamente em organizações. Esse detalhe sobre a forma que nos referimos a nós mesmos e aos nossos pares informa — e muito — o jeito como vamos nos permitir atuar e exercer impacto.

Nos últimos anos temos ganhado cada vez mais espaço como designers no mundo da tecnologia. O assento na mesa tem acontecido. Todo esse exercício aqui vem numa intenção de desafiar um pouco nossa percepção sobre nós mesmos e sobre nosso entorno. Talvez um pequeno passo para que possamos fazer cada vez melhor uso desse assento, dessa mesa.

Que a gente consiga usar a linguagem a nosso favor e enxergarmos a nós mesmos como pessoas de produto e pessoas de negócio também, porque temos muito a contribuir nessas esferas.

* Estou usando aqui tecnologia como sinônimo“tecnologia da informação”, mas entendendo que dependendo do referencial, qualquer artefato — de uma cadeira, até dinheiro e a própria linguagem — pode ser entendido como tecnologia.


Referências

The Four big risks — Marty Cagan — Silicon Valley Product Group Blog

The Definition of User Experience (UX) — Don Norman e Jakob Nielsen — NNGroup Blog

Design Thinking — Tim Brown — HBR Junho 2008 citado em Thomas Lockwood — Design Thinking: Integrating Innovation, Customer Experience, and Brand Value. Allworth Press -2009.

Who’s Responsible for What in the Product Trio? — Teresa Torres — Product Talk

Usability — ISO 9241 definition — w3c.org

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